Ninguém se
esqueceu, penso, das massinhas de modelar com que brincávamos na nossa
infância; alguns, como eu, se reduziam a fazer bolinhas coloridas, mas os mais
habilidosos chegavam a pequenas esculturas muito graciosas; bons momentos foram
passados ao lado deste brinquedo.
Também chega a
ser bem óbvio que continuamos, em outras fases da vida, “modelando” outras
“massinhas”, às vezes bem mais sutis, como pensamentos e sentimentos, nossos e
alheios, até as substâncias mais concretas, como palavras e atos. Também
poderíamos medir a nossa habilidade para lidar com estas substâncias pela
galeria de “produtos” que vamos deixando para trás, dentro e fora dos outros e
de nós. Isso constitui nossa história, nossa memória, a síntese do que deixamos
registrado na vida.
Lindas manhãs de
sol são bem conhecidas como ótimas para nos chamar a atenção para pequenas
belezas desapercebidas, como pássaros, flores etc. São comuns os textos
idílicos sobre estas coisas. O que gostaria de questionar é se estas e todas as
demais coisas, enfim, em todos os planos, também não são o rastro de alguém,
que deixou registrado, para todos os lados, sua própria história. Será que
existiriam as coisas sem que nada tivesse passado e deixado marcas nesta amorfa
“massinha de modelar” primordial?
Lembro da
conhecida passagem bíblica: “Pelas vossas obras, vos conhecerei.” Se
pretendemos, como é natural que todo ser humano pretenda e até anseie, conhecer
a identidade e a intenção do autor ou dos autores da vida, não seria
interessante nos debruçarmos com um sentido de investigadores e com um “faro”
simbólico sobre estas pegadas? O que seria a memória do universo, chamada pelos
orientais de “akasha”, senão o mapa com o registro de todas estas
inúmeras pegadas? Observando-as, não podemos presumir, dessa trajetória, sua
provável origem... e seu destino? Não é importante indagar-se sobre isso?
Dizem de um
antigo filósofo grego, Diógenes, que se recusava a ler livros, pois o sábio lê
diretamente na natureza, que nada esconde nem distorce. A nossa própria
natureza interna deve estar repleta de pegadas, às vezes, lineares, às vezes,
em círculos. Todas elas, mensagens que, não lidas e não entendidas, estão
sujeitas a serem repetidas indefinidamente.
Nunca tivemos
tantos meios de comunicação, e... o que temos comunicado uns aos outros? Ou a
nós mesmos? Comunicação não depende apenas de meios, mas de se ter algo a
dizer, algo de profundo e válido. Como diz o clássico budista Dhammapada: “Mais
do que mil palavras sem sentido, vale uma única palavra que traga consolo a
quem a ouve”; nós já falamos esta palavra, a nossa palavra, que dará sentido à
nossa vida?
Diz um mito que o
exército grego teve uma improvável vitória contra os persas na batalha de
Maratona; já estava tudo combinado: se os persas fossem vitoriosos, os
atenienses queimariam e abandonariam a cidade, para que ela não fosse
profanada. Quando da vitória, o mensageiro Fidípedes teria que percorrer
quarenta quilômetros até Atenas o mais rápido possível, para evitar que fosse destruída
por seus próprios moradores; tinha que levar a boa nova. Tudo dependia dele. E
ele o fez: dosou muito bem seu fôlego, de tal forma que, ao chegar a Atenas,
disse a única palavra possível e necessária: “- Vencemos!”. E tombou exausto.
Todos temos pelo
menos uma palavra a dizer, nossa palavra, que tem de ser pronunciada antes de
“tombarmos” exaustos. Se não a dissermos, provavelmente, coisas tão belas
quanto Atenas serão perdidas. Cada ser humano tem o seu recado, único e
irrepetível, para dar ao mundo; meça seu fôlego, e... procure o imprescindível,
a especial notícia, legível em algum lugar, dentro e/ou fora de nós, acessível
àqueles que refletem e buscam sua vida interior. Nada mal lembrar, de vez em
quando, de Fidípides, o herói que soube fugir à superficialidade, mergulhar na
vida e conquistar sua palavra sagrada, entrega-la ao mundo... e descansar em
paz.
Voltemos à lição da
criança e aprendamos, com olhos puros e visão profunda, a moldar nossas
massinhas e dar nosso recado, e assim, construir Atenas e conservá-las; assim,
os homens, desde sempre, fizeram história.
Lúcia Helena Galvão
Diretora adjunta de Nova
Acrópole Brasil
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