quinta-feira, 2 de junho de 2016

A menina que vendia castanhas


Numa manhã nebulosa e fria, fazendo o meu trajeto matinal, de automóvel, lembrei subitamente de um livro de histórias que eu possuía, na minha infância... Dessas lembranças que afloram de repente, parece que para nos cobrar alguma coisa, e vão-se embora, sem maiores explicações. Era uma história de uma menina, um daqueles desenhos em que os olhos do personagem são desproporcionalmente grandes, redondos e vivos: ela vendia castanhas num local onde nevava. As pessoas passavam, caíam flocos de neve e ela oferecia, desde seu carrinho onde ardia um pequeno lampião, castanhas... Uma paisagem exótica para uma criança brasileira; um mundo onde tudo parecia distante, misterioso e belo. E eu sonhava e sonhava com um mundo onde tudo fosse assim:
magia e beleza.

Hoje, quando minha vida já dobra sua quinta década, a menina volta para me visitar, numa manhã nublada, talvez para perguntar: o que você fez com seu sonho? Pensativa diante dessa desafiadora pergunta, baixo a janela do meu carro, que desce devagar, revelando o meu mundo. Continua não nevando nele... mas há, no meio de carros excessivamente apressados e barulhentos, um tronco de árvore cortado, que se inclina para frente, como se quisesse vencer sua imobilidade e avançar... há um pai que carrega uma pequena menina sobre os ombros, para a escola; ela usa uma touquinha vermelha e sacode um ramo de árvore em uma das mãos; há um pequeno cão que se esfrega na grama, parece que quase sorrindo, morto de felicidade... apenas por estar vivo.  O que me ensinaram estas cinco décadas, pequena vendedora de castanhas de olhos brilhantes?

Deixa eu te contar: durante esse tempo, eu já estive em países que nevavam... e a magia não estava lá. Já vi muitos e muitos lampiões em muitas mãos, em noites claras ou escuras... e a magia também não estava lá... Tantas terras e tantas paisagens, exóticas, algumas... mas nada de magia! Mas visitei sim um local cheio de mistérios, no dia em que comecei a conversar com meu próprio coração. Quando ele me disse que doía diante da dor humana, e fez com que eu me comprometesse com ela; quando ele me explicou que se alimentava de beleza, e me fez buscá-la para todos os cantos (mesmo em cenas simples, como a vista pela janela do meu carro, nesta manhã) para não deixá-lo faminto... quando ele me disse que, mais que pulsava, vibrava quando presenciava momentos de valor e de nobreza, de grandeza de alma e de generosidade, enfim, quando via um ser humano de verdade, e me fez procurar cada vez mais estes momentos e esta visão, inclusive “fabricando-os” eu mesma, de vez em quando... Quando ele me disse que os olhos brilhantes das pessoas (como os seus!), são sinais de que lá dentro vive um coração como ele, que necessita das mesmas coisas, pois eles, corações humanos, parece que vêm todos de uma mesma família, todos com gostos muito semelhantes. Temos diálogos longos... nele, vejo nevar e fazer sol, vejo lampiões e estrelas, vejo sonho e vejo magia.
Ao aprender sua língua, jamais estou sozinha... e virei uma buscadora de paisagens internas maravilhosas, e de olhos brilhantes, para compartilhá-las. Seja bem vinda de volta à minha vida, pequena vendedora de castanhas... Não, eu não abandonei nem vendi o sonho que você me oferecia: ele ainda está comigo... Posso reencontrá-la em paz!

Lúcia Helena Galvão
Diretora adjunta de Nova Acrópole Brasil
luciahga@hotmail.com

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